Jornal de Medicina e Saúde

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03 março 2006

Entrevista
Isabel Santana, neurologista e investigadora de Alzheimer, nos Hospitais da Universidade de Coimbra

“A interacção social e a cultura podem contribuir para a saúde das células neuronais”


A Doença de Alzheimer (DA) afecta cerca de 60 mil portugueses, que têm, na sua maioria, mais de 65 anos. A perda de memória é o principal sintoma desta doença neurodegenerativa, que acaba, gradualmente, por comprometer a autonomia dos doentes no seu quotidiano. Isabel Santana, neurologista e investigadora, nos Hospitais da Universidade de Coimbra e na Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra, defende que a cultura e a interacção social podem ser ferramentas preventivas de Alzheimer, uma doença que é alvo de estigma social.


Daniela Gonçalves - A perda de memória é o principal sintoma da doença de Alzheimer, que afecta cerca de 60.000 portugueses. O que está na base deste défice de memória?

Isabel Santana - A perda de memória deve-se à morte de células no hipocampo e nalguns núcleos profundos do cérebro, estrutura importante nos processos de memória recente. A perda destas células tem como consequência a perda de determinadas substâncias químicas, uma delas é a acetilcolina. Isto porque a memória é uma função biológica que depende de substratos bioquímicos e celulares, que basicamente reforçam a comunicação entre células através de terminais sinápticos.

D.G - Em que é que se concretiza, no quotidiano dos doentes, esta perda de memória?

I.S - A doença manifesta-se pela perda de informação recente, ou seja, os doentes mantêm as suas memórias e relações familiares antigas, mas perdem memórias recentes, como por exemplo, mensagens, acontecimentos e por vezes mesmo o conhecimento da existência de elementos mais novos na família. Esquecer um recado do telefone ou da marcação de uma consulta são exemplos de situações comuns que podem acontecer no quotidiano dos doentes.

D.G - O Defeito Cognitivo Ligeiro amnésico (alteração isolada da memória) pode ser um indicador e um sintoma inicial de futuro desenvolvimento da doença de Alzheimer. Como é que ele é avaliado ou medido?

I.S - Sim. Os estudos indicam que, do total dos doentes que sofrem de defeito cognitivo ligeiro amnésico, cerca 10 a 15 por cento/ano vão apresentar outros défices cognitivos (evolução para demência) ou seja, no intervalo de 6 anos, cerca de 80 por cento desenvolvem uma forma de demência, a maioria Doença de Alzheimer.
Existem diferenças significativas entre estas duas entidades, a mais importante será o grau de autonomia/independência funcional, que existe no défice cognitivo único e está comprometido na DA. Por critérios de diagnóstico objectivos, um doente que tem apenas um defeito de memória não tem uma demência, mas sim um defeito cognitivo único, designado, ligeiro. A grande maioria dos casos de Alzheimer, apresentará inicialmente uma perda de memória, mas só quando se somam outros défices em pelo menos outra função, como por exemplo, cálculo, orientação no espaço e no tempo, escrita, e o doente deixa de ficar autónomo em actividades mais complexas, é que se pode já falar num síndrome demencial.
As queixas de alterações da memória no dia-a-dia, e a sua confirmação por parte da família ou outras pessoas, são relevantes para a avaliação do doente, e constituem um critério de avaliação do defeito cognitivo ligeiro. Depois, há um exame fundamental na avaliação de qualquer causa de deterioração cognitiva que é realizada por testes neuropsicológicos que avaliam as funções cognitivas (a memória, a linguagem, o cálculo, etc.). Esses testes são “pontuados” e comparados com as pontuações que se consideram normais para determinada idade e escolaridade. É com base nesses valores médios (normalizados ou aferidos) que nós podemos indicar se o indivíduo tem um desempenho normal ou não.

D.G - Que tipo de acompanhamento deve ter um doente com um défice cognitivo ligeiro?

I.S - Esse doente tem indicação para ser seguido e avaliado. Há tratamento sintomático para a demência, mas não há tratamento curativo nem preventivo estabelecido. Existem medicamentos que aumentam a concentração cerebral de certos neurotransmissores e que melhoram a memória e outras funções cognitivas. Por exemplo, alguns medicamentos têm a capacidade de inibir a enzima que degrada a Acetilcolina, aumentando os níveis cerebrais deste neurotransmissor; outro grupo de fármacos interfere na activação de outro neurotransmissor - o glutamato, produzindo tambéwm benefícios sintomáticos. No entanto, não há nenhuma evidência definitiva que estes fármacos retardem a morte celular, e discute-se a sua capacidade para controlar a evolução da doença.

D.G - Existem igualmente alterações de comportamento no doente com Alzheimer. Quais são?

I.S - Os doentes têm personalidades diferentes e isso modela as eventuais alterações do comportamento induzidas pela doença. Mais frequente, na fase inicial da demência, e sobretudo, no Defeito Cognitivo ligeiro, é que os doentes fiquem deprimidos. A depressão tem dois condicionantes importantes, um deles é a percepção dos défices e eventualmente, nas pessoas mais informadas, o receio do doente de vir a ter a Doença de Alzheimer; o outro é biológico, é o resultado de um outro défice bioquímico que existe na doença, a baixa de serotonina, que se sabe estar associado/determinar depressão.
Depois, à medida que a doença vai avançando, aparecem alterações mais complexas de comportamento, tais como a agitação, a ansiedade, a actividade motora repetida (deambulação, mexer e remexer gavetas,etc.), a agressividade, e a psicose. Nesta última categoria de sintomas inclui-se o delírio de roubo, muito frequente, porque os doentes esquecem-se onde colocaram as coisas.

D.G - Quais as consequência dessas alterações de comportamento do doente com Alzheimer, na sua família?

I.S - é um choque muito grande para a família ver que o doente está a perder capacidades, mas as famílias vão-se habituando e adaptando a essa realidade. As alterações do comportamento podem desestabilizar um equilíbrio precário duma família já muito sobrecarregada com a dependência funcional e cognitiva do doente de Alzheimer. Está provado que são a principal causa de institucionalização dos doentes. Por exemplo, um doente que não dorme ou dorme só de dia e está acordado durante a noite, pode tornar-se num elemento desestruturante da família. A doença de Alzheimer tem um impacto familiar e económico muito grande. O doente tem necessidade de acompanhamento permanente, e isto implica a existência de cuidadores formais ou informais ou a institucionalização do doente .

D.G - Em que é que consiste a reabilitação cognitiva e qual o seu principal objectivo?

I.S -. A reabilitação cognitiva é mais eficaz, nas fases precoces da doença; numa fase mais avançada, permite também reorientar as actividades do dia-a-dia e fornecer estratégias para saber lidar com a situação. Por vezes não é fácil envolver o doente, já que muitos não têm capacidade para valorizar os seus défices. No entanto um doente pouco estimulado, sentado o dia todo numa cadeira e não envolvido em actividades perderá mais funções. Em termos biológicos, admite-se que a estimulação cognitiva e a actividade em geral potenciam a estimulação das sinapses existentes entre as células.

D.G - Na sua óptica, as terapias mistas (farmacológicas e cognitivas) são as mais adequadas para controlar os sintomas da doença de Alzheimer?

I.S. - Penso que o ideal é essa combinação. Mas, os medicamentos e a terapia cognitiva são caros, sendo esta última terapia infelizmente apenas acessível a alguns doentes.


D.G . - Sabe-se que o diagnóstico precoce é crucial para retardar a evolução da doença. E em termos de prevenção, o que é que a senhora Professora aconselha os portugueses a fazer?

I.S - As únicas estratégias preventivas que se admite que poderão ser eficazes são estratégias muito precoces de modificação de “estilos de vida” (aplicadas idealmente pelo menos a partir dos 40 ou 50 anos). Uma estratégia confirmada é o treino através da escola – verificou-se que quanto maior for a escolaridade menor é o risco de demência. Depois, no fundo, podemos transpor esse tipo de mecanismos para a toda a vida da pessoa. Quanto mais estimulada do ponto de vista cognitivo estiver a pessoa, mais protegido estará o seu cérebro relativamente à deterioração cognitiva. A interacção social e a cultura são exemplos de estratégias que podem contribuir para a saúde das células neuronais.

D.G - Considera que o Programa da Direcção Geral de Saúde de luta contra a doença de Alzheimer está a ser eficaz?

I.S - Uma intervenção importante nesta altura seria diminuir consideravelmente o preço dos medicamentos sintomáticos, que é muito elevado. Penso que deveria haver uma comparticipação do Estado, com base, evidentemente, em diagnósticos rigorosos.

D.G - A Associação Portuguesa de Familiares e Amigos de doentes com Alzheimer (APFADA) visa apoiar os doentes e as suas famílias, formar os cuidadores e sensibilizar a sociedade para a questão do doente com Alzheimer. Considera que esta meta tem sido cumprida?

I.S - A APFADA foi o melhor divulgador da doença de Alzheimer em Portugal. Isto porque a sua vocação formativa tem sido cumprida na íntegra. É um parceiro importantíssimo na formação e no apoio aos cuidadores, consciencializando-os que não são os únicos que estão naquela situação, e ensinando-lhes estratégias para saberem lidar com os doentes. Neste contexto, a Associação Portuguesa de Familiares e Amigos de doentes com Alzheimer tem tido um papel fundamental.
No entanto, a APFADA deveria ter uma capacidade financeira superior para ter instituições próprias, principalmente, centros de dia, para que os doentes pudessem ser institucionalizados por períodos curtos. Essa capacidade financeira deve vir, em primeiro lugar, pelo associativismo – as pessoas com interesse neste problema (e não só os familiares dos doentes) devem ser envolvidos, devem voluntarizar-se e associar-se.

D.G. - Os doentes com Alzheimer são alvo de estigma social?

I.S - Os doentes e as suas famílias, sofrem de isolamento – muitas pessoas têm receio de não saber lidar com eles, e por isso, as famílias acabam por ficar muito sozinhas. As famílias precisam muito do apoio de todos os amigos.